Relatório elaborado pela PGE (Procuradoria-Geral do Estado) indica um forte conluio entre advogados e médicos para judicialização de procedimentos médicos e, dessa forma, faturar alto dos cofres do governo estadual.
Conforme denúncia do jornal Correio do Estado, apenas uma advogada, em 2023, ingressou com 32 ações solicitando procedimentos médicos, sendo que 28 deles tinham custo superior a R$ 150 mil.
O MPE (Ministério Público Estadual) transformou o procedimento preparatório aberto em 2023 em inquérito civil. A investigação pode ir ainda mais além, pois a Polícia Civil também estaria no caso.
Os processos patrocinados pela mesma advogada resultaram (ou resultariam, na época do dossiê, em 2023) em um impacto de R$ 5 milhões aos cofres públicos. Nessas ações judiciais, normalmente em caráter de urgência, há pouco espaço para o contraditório do poder público ou para questionar orçamentos.
O valor, a título de comparação, é pouco menos da metade dos R$ 14 milhões investidos em cirurgias eletivas no ano passado, com ajuda federal.
A suspeita dos envolvidos na investigação é que o sobrepreço dos procedimentos médicos pode contribuir para elevar o faturamento dos profissionais de saúde e ainda levar os advogados a turbinar seus honorários sucumbenciais, que podem chegar a 20% do valor da causa.
Quanto ao inquérito do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, ele também investiga uma suposta omissão das procuradorias do Estado e do Município.
A motivação foi levantada pelo juiz Cláudio Muller Pareja, que estranhou que, em um desses processos com valor exorbitante, o poder público não tenha pedido a impugnação dos orçamentos.
Na investigação do MPE, já foram identificados pelo menos cinco clientes de uma mesma advogada, já intimados a depor. A investigação é reforçada pelo mapeamento do procurador do Estado Kaoye Guazina Oshiro com o apoio da Polícia Civil, que notou uma repetição de processos judiciais requerendo a realização de neurocirurgias e cirurgias ortopédicas, em que os pacientes solicitam procedimentos com valores expressivos.
Todos os processos, conforme o documento ao qual o Correio do Estado teve acesso em primeira mão, eram patrocinados pela mesma advogada: Luciana Tosta Quintana Ribas. “Não raro, os profissionais que ofereciam os serviços (os procedimentos cirúrgicos) se repetiam”, argumenta o procurador do Estado.
Em 2023, ano em que se concentra a investigação, a advogada Luciana Tosta Quintana Ribas ingressou com 32 demandas judiciais contra o Estado e municípios. A maioria das demandas foi na comarca de Campo Grande: 19 ao todo.
Mas também havia processos judiciais, na época em que o procurador do Estado elaborou o documento, nos municípios de São Gabriel do Oeste, Chapadão do Sul, Ponta Porã, Nioaque, Costa Rica, Miranda (Bodoquena), Rio Verde de Mato Grosso, Paranaíba, Coxim e Rio Negro.
“De fato, no universo de 32 processos, apenas quatro contêm como menor orçamento de equipe médica montante inferior a R$ 150 mil”, argumenta o procurador.
O monitoramento feito pela Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul ainda apontou para indícios de carta marcada na oferta dos procedimentos pelos médicos. Normalmente, o paciente apresenta três orçamentos de procedimentos ao magistrado, que normalmente decide pelo mais barato.
“Na maior parte dos orçamentos de menor valor – ou seja, dos orçamentos utilizados como parâmetro para sequestro de verbas públicas para a realização de procedimentos em âmbito privado – são dos Drs. (médicos) Wolnei Zeviani (13) e Antônio Martins de Freitas Júnior (16).
“O procurador do Estado complementa: “Ou seja, dos 32 processos, apenas três não têm como orçamento de menor valor o apresentado por um desses dois médicos.”
O dossiê da PGE feito a pedido do MPE ainda lembra que, nos outros três casos em que Zeviani e Freitas Júnior não aparecem, os médicos citados são Mariana Mazzuia (1) e Roberto Cisneros (2). O que chamou a atenção da PGE-MS é que, no orçamento feito por Mariana Mazzuia, a conta indicada como destino para o depósito era da empresa Nanoneuro Serviços Médicos, cujo responsável financeiro é nada menos que Wolnei Zeviani. O documento ainda mostra que Zeviani e Freitas Júnior também ofertaram orçamentos nos procedimentos em que não ofereceram o menor preço.
Na época em que o relatório ficou pronto, no final de 2023, o dossiê da PGE-MS ainda indicou que, dos 32 processos patrocinados por Luciana Ribas, 16 já estavam com ordens de bloqueios de verbas públicas efetuadas.
“Todos esses bloqueios foram destinados a empresas que contêm ou o Dr. Wolnei Zeviani ou o Dr. Antônio Martins de Freitas Júnior ou ambos no quadro societário”, demonstrou.
As empresas que receberam os pagamentos foram: Instituto de Nervos, Cérebro e Coluna (INCC), Martins Neuro Serviços Médicos, WW Zeviani Prestação de Serviços Médicos e Nanoneuro Serviços Médicos.
Os procedimentos tinham valores exorbitantes e distantes da média praticada pelo mercado, indica o relatório do procurador Kaoye Oshiro. Ele cita o exemplo de uma cirurgia de coluna indicada pela advogada, em que o procedimento de menor valor sairia por R$ 339,4 mil.
Ocorre que a PGE encontrou, na mesma época, um orçamento para o mesmo procedimento a ser executado em Ponta Porã por menos da metade do preço: R$ 162,4 mil.
Em meados do ano passado, a própria PGM (Procuradoria-Geral do Município) de Campo Grande revelou, em peça judicial, a existência de um suposto esquema envolvendo médicos e advogados que forçam a judicialização da saúde para aumentar seus rendimentos.
A descrição veio à tona em defesa de uma ação do MPE que visa acabar com uma fila de espera de 7,7 mil consultas e cirurgias ortopédicas. Na ocasião, a procuradora do município Viviani Moro afirmou, na peça de defesa, que os custos desses procedimentos, solicitados via processos judiciais, contribuem para o aumento das filas na saúde pública.
Em contestação à ação civil pública ajuizada pelo MPE no fim de abril, ela destacou dois processos judiciais em que pessoas demandam procedimentos de quase R$ 600 mil e R$ 50 mil. “Desde a judicialização da saúde, inúmeros profissionais médicos e empresas encontraram nas ações meios para obter melhores lucros”, afirmou a procuradora.
“Por uma questão lógica, tais profissionais não se interessam em realizar o procedimento no âmbito do SUS, cujo custeio de tais procedimentos é pífio. E, por mais que os serviços estejam contratualizados, o gestor público não possui finanças suficientes para subsidiar valores equiparados com os que são praticados no âmbito privado”, complementou a procuradora jurídica.