A CPI do Crime Organizado precisou de apenas 40 dias para escancarar um diagnóstico alarmante: o Brasil perdeu o controle mínimo sobre partes do próprio território, hoje dominadas por facções criminosas. O governo federal, sob o argumento de preservar o pacto federativo, deixou de exercer coordenação efetiva da segurança pública.
Em depoimento, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, admitiu que o Estado não dispõe de recursos, integração nem estrutura básica para enfrentar o crime organizado, sobretudo nas fronteiras de Mato Grosso do Sul, um dos principais corredores de cocaína da América do Sul. Ao ser questionado sobre o que seria necessário para uma atuação mais firme, sua resposta foi desanimadora: “dinheiro, dinheiro, dinheiro e mais dinheiro”. Segundo a CPI, nem isso existe.
A declaração reforçou a percepção de que o governo federal carece de um projeto sólido para enfrentar as facções. Lewandowski, que tentou manter a segurança pública como secretaria dentro do Ministério da Justiça — contrariando a promessa de recriar um ministério autônomo — vê seu espaço político diminuir.
O ministro mencionou duas fraudes reveladas neste ano, ligadas ao Banco Master e à Operação Carbono Oculto, nas quais o crime teria lavado cerca de R$ 40 bilhões em ativos financeiros — valor quase vinte vezes maior que os R$ 2,1 bilhões do Fundo Nacional de Segurança Pública. Para agravar o quadro, R$ 400 milhões destinados à área foram contingenciados.
A desarticulação institucional
Enquanto PCC e Comando Vermelho expandem operações pelo Paraguai e pela Bolívia, transformando a rota sul em polo industrial do narcotráfico, Lewandowski reconheceu que as forças de segurança brasileiras sequer se comunicam entre si. “Polícia Civil não troca informação com a Polícia Militar; a PF não troca com a Polícia Penal Federal e muito menos com a PRF. São sistemas isolados.”
Ele defendeu uma emenda constitucional que torne obrigatório o compartilhamento de inteligência, instrumento que nunca existiu e que o governo ainda não conseguiu formular. “Sem isso, nós não vamos avançar”, afirmou.
Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que PCC e CV já operam como corporações transnacionais, dominando 13 estados e com presença consolidada em todos os 27. Mato Grosso do Sul aparece como um dos principais centros logísticos desse império.
No entanto, o deputado estadual Coronel Davi (PL), ex-comandante da PM, discorda de Lewandowski sobre a realidade local. Segundo ele, há integração no Estado, mas fruto da articulação entre lideranças regionais e superintendências da PF e PRF — não de diretrizes federais. Isso explicaria por que o Estado lidera apreensões e monitoramento das facções há anos.
Estados no fronteira
Davi acusa o ministro de desconhecer a dinâmica real da segurança pública e de minimizar o protagonismo estadual. Diz que o governo federal “não participa com nada”, deixando aos estados a responsabilidade sobre encarceramento, viaturas, equipamentos, munição e tecnologia — muitas vezes bancados por emendas parlamentares.
Ele lembra que o PCC atua na fronteira desde 2006, o que deveria ter ampliado o papel da União, não o contrário. Defende maior presença do Exército na faixa de fronteira e a retomada do Sisfron, projeto militar hoje marcado por repasses interrompidos ou irregulares. Segundo especialistas, esse vácuo ajuda a explicar por que MS se tornou terreno fértil para facções.
Uma parte expressiva da cocaína que entra no país passa por lá. As apreensões representam só cerca de 5% do total. Em outubro, uma única carga de 454 quilos foi avaliada em R$ 40 milhões. Extrapolando esse fluxo, o lucro anual das facções pode chegar a R$ 50 bilhões — o dobro do orçamento estadual — enquanto o Estado segue fragilizado.
O colapso exposto
Para além da crise orçamentária, a CPI revelou fissuras institucionais profundas. A sessão com Lewandowski tornou-se, segundo um senador, uma “lavanderia institucional”: acusações cruzadas, denúncias éticas e ataques entre poderes. “A culpa é de todos nós. Perdemos o rumo”, afirmou o senador Jaime Bagattoli (PL-RO).
O relator, senador Alessandro Vieira, atualizou o “placar de escândalos” envolvendo autoridades do Judiciário, citando viagens e contratos milionários ligados ao caso Master. As revelações mostraram um sistema permeado por brechas que favorecem o crime.
Vieira e o presidente da comissão, Fabiano Contarato, converteram a CPI em polo técnico. Dali surgiram negociações com a área econômica e a criação da Cide-Bet, fundo que deve garantir R$ 30 bilhões anuais ao enfrentamento das facções. A medida integra o novo relatório do PL Antifacção, aprovado pelo Senado.
O projeto endurece penas (15 a 30 anos), estende punições a milicianos, amplia instrumentos de investigação, protege jurados e impede indulto a chefes de facções. Também corrige dispositivos inconstitucionais do texto da Câmara.
Um país no limite
Foi a partir das perguntas de Vieira e de Hamilton Mourão (Republicanos-RS) que Lewandowski admitiu: o Estado brasileiro não possui inteligência integrada, orçamento suficiente nem arcabouço legal para enfrentar grupos com disciplina militar e receitas bilionárias. Exército e Abin também atuam isoladamente. “O crime está avançando… Hoje as forças de segurança estão no córner”, disse o ministro.
O retrato institucional é sombrio: fronteiras vulneráveis; polícias que não se comunicam; órgãos federais desarticulados; poderes imersos em seus próprios vícios. Nesse ambiente, facções deixam de ser meros grupos prisionais para se tornarem conglomerados que disputam mercados, territórios e influência política.
O crime prospera nessas brechas, onde a República já não exerce soberania plena. E, como admitiu o próprio ministro, não exercerá enquanto o país não reorganizar seu sistema de segurança, reformar dispositivos constitucionais e financiar o básico. Soma-se a isso a falta de compreensão sobre a própria gênese de PCC e CV — organizações que nasceram nas prisões e hoje ditam regras dentro e fora delas.

