Por Ronaldo de Souza Costa, Médico – Especialista em Clínica Médica e Saúde do Trabalhador
O neoliberalismo não tem limites em sua voracidade. No seu processo tudo pode ser objeto de lucro e de acumulação de capital.
Mas no caso da saúde, estamos falando de um Direito Humano. E, onde entra o lucro na saúde, a doença prolifera, principalmente em países pobres, considerando não apenas a pobreza econômico-financeira, mas também a pobreza educacional e estrutural, e redes de serviços públicos que são pagos, mas não funcionam.
O Brasil é uma colônia de exploração desde 1500. Já passamos por ciclos de exploração do pau brasil, do ouro, da cana de açúcar, do gado, do café. Mas a pior das explorações que temos sofrido é a exploração decorrente de uma submissão cultural e política, aos interesses globalizados. A independência do País foi um grande acordo, sem traumas ou rupturas com o processo colonialista. E quando o país começou a ter definida uma identidade política, cultural, econômica, veio o golpe militar de 1964. E de novo a imposição: “você Brasil é pra ser colônia”. Não pode ter indústrias de base, nem produzir o que é bom para o seu povo. Tem de consumir nossas manufaturas e nos mandar alimentos, agora com o nome moderno de commodities.
E assim, nesta imposição ao consenso de Washington, ao FMI, à economia globalizada, ao capitalismo financeiro, os brasileiros produzem riquezas na casa dos trilhões de dólares por ano. Mas todos os brasileiros já nascem devendo pelo menos 15 mil reais. O equivalente ao total da dívida pública superior a 2,5 trilhões de reais divido pelo total da população.
O capitalismo no Brasil é o capitalismo da submissão. Não é igual ao capitalismo japonês, ou americano, ou coreano. Aqui é proibido ter autonomia. É proibido inventar. Estamos passando anos por um longo processo de desindustrialização. E a economia é de livre mercado. Os capitalistas brasileiros são mesquinhos, incompetentes. Nem copiar bem o capitalismo brasileiro copia. Copia mal e não aprimora, se tornando refém de tecnologias. A cronicidade de uma educação doutrinadora de submissão ruim reflete na dependência científica e tecnológica, inclusive nas tecnologias da saúde. Somos dependentes tecnologicamente na indústria de equipamentos médicos e medicamentos. Só é permitido montar, e transformar. Aqui não é permitido ter fábricas de fábricas, indústrias de base ou de alta tecnologia. Nem podemos agregar valor nas commodities. Exportamos grãos, carnes e minérios.
E o que tem isso a ver com as Organizações Sociais na Saúde?
Tem a ver! Este é mais um dos modelos para implantar o Managed Care* no Brasil, mas com a bondade do orçamento público. Desde o Governo Militar foram criadas instituições de “benevolência” com dinheiro público, as Santas Casas, Irmandades e Fundações Filantrópicas. Todas isentas de todos os impostos, recheadas de apoiadores do regime (militar). À época o financiamento era feito por um programa do governo militar, com empréstimos a perder de vista, sem juros e sem correção monetária, era o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS). O Programa era tão bom, que com a crise do petróleo e a disparada da inflação, as instituições construídas em áreas de doações públicas, e mobiliadas de forma graciosa com dinheiro público, tiveram suas dívidas mediocramente desvalorizadas. Implantaram rede privada com dinheiro público e não consolidaram à época uma rede pública de saúde.
E cada governo no pós-ditadura foi criando modelos de financiamento destas estruturas com artimanhas que permitiam achaque aos cofres públicos, de forma legal, mas de caráter ilegítimo, à medida que o sistema público sucumbia, e continua a fraquejar por falta de investimentos, políticas e gestão decentes.
E depois do PIASS foram criados sucessivos programas de financiamento para o setor privado, com projetos via Fundo Nacional de Saúde, REFORSUS, PROSUS, PRONON…e outra dezenas de formas de desvio de recursos públicos da saúde. Por último foi criado o Orçamento Impositivo. O governo é obrigado a contemplar as indicações dos Parlamentares com recursos da previsão orçamentária anual do Ministério da Saúde.
As Organizações Sociais configuram o sonho realizado da elite, que se organiza em um campo que denominam ”terceiro setor”. Descobriram que podiam achacar o orçamento público também na Cultura, na Educação e principalmente na saúde. E entram na esfera pública, consomem o orçamento público, sem qualquer critério.
As Organizações sociais operam sem concurso público, sem fiscalização dos órgãos de controle a que estão sujeitas as verbas públicas, sem obedecer às demandas clínico-epidemiológicas locais, regionais e nacionais. Um descompromisso total para pulverizar verbas para apoiadores de campanha e para empoderar setores e famílias, condicionando o emprego e favores ao voto de cabresto.
Diante da ineficiência e ineficácia do Estado, governos que são incompetentes e sem compromisso público, que não
honram os votos que receberam para fazer cumprir o que está determinado na Constituição Federal com relação à saúde, como direito de todos e dever do Estado, estão distribuindo para Organizações Sociais o patrimônio público físico, desfazendo-se do maior valor que é o patrimônio imaterial que os trabalhadores acumularam por anos: experiência e conhecimento. Fazem de tudo para transferir suas obrigações de gestão na saúde para Organizações Sociais.
Compreendemos a declaração de incompetência por parte dos gestores, ao transferir o dever de executar ações inerentes ao seu poder, o poder executivo, para o setor privado. Mas ocorre que o combalido Estado brasileiro mal consegue custear serviços, é óbvio que com o orçamento fixo da saúde, estabelecidos em percentuais por esfera (municipal, estadual e federal) jamais conseguirá financiar o lucro.
E não conseguimos atestar no Brasil, qual grupo privado, com orçamento per capita quatro vezes maior faz, por exemplo pesquisa clínica. Nos surtos recentes de zica, dengue e chicungunya só vejo falar de pesquisas em estruturas públicas. O setor privado nacional também se omite na solução de problemas mediante pesquisa. Quem faz pesquisa em saúde no Brasil, também é o SUS. E o governo republicano ainda financia bolsas de mestrado e doutorado indistintamente para setores público e privado.
Deve haver por detrás de tudo isso, uma grande incorporadora multinacional de planos de saúde preparada para assumir de forma integrada este conjunto de Organizações Sociais. Assim como devem os seus mentores gestores, sabendo deste desfecho futuro combinado com os governos, já estarem comemorando a desgraça do SUS e o desespero da população, que vislumbra ter um convênio como primeira alternativa para ter acesso a serviços de saúde.
Mas a história do Sistema Único de Saúde está escrita nos seus anos de vida. Embora sofra ataques de governos, políticos, instituições privadas, é o maior plano de saúde do mundo. Faz transplantes, controla a qualidade do sangue e fabrica hemoderivados, fabrica vacinas, faz pesquisa, distribui medicamentos, faz exames dos mais simples aos mais complexos. Perante o governo federal, os governos estaduais e municipais enviam seus relatórios dizendo que todas as metas pactuadas estão sendo cumpridas. Se mentem, compete à sociedade e aos órgão de controle fazer os apontamentos, denúncias para punir os delinquentes. Ou então a saúde deve ser federalizada.
Ainda haverá longo embate sobre o financiamento do sistema de saúde. Os cidadãos e cidadãs devem romper com a submissão imposta pela hegemonia capitalista no campo da saúde. Deve definir que a saúde não deve ser campo de lucro para ninguém, porque a saúde não deve ser mercadoria, que se compra ou se vende, mas um direito humano. As instituições privadas devem ter a criatividade e competência para sobreviverem de seus próprios esforços e recursos, inclusive as Organizações Sociais.
Em Mato Grosso do Sul a Conferência Estadual de Saúde, órgão máximo deliberativo do Controle Social, aprovou contra as Organizações Sociais no Estado, o que deve ser acatado e implementado pelo executivo. E deliberou uma transição gradual do modelo público-privado para um modelo 100% público, com aumento de 15% dos investimentos públicos por ano e redução equitativa de pelo menos 15% dos investimentos na rede privada por ano, de forma que, no prazo de 6 anos, o SUS passe a ser totalmente público. Se o Governo é republicano e democrático, deve acatar a deliberação da Conferência Estadual de Saúde. O controle social delibera e o Governo cumpre. Esta é a dinâmica que deve ser respeitada.
“Managed Care” sistema cuja filosofia é o gerenciamento de custos de procedimentos em saúde, com objetivo principal de obtenção de lucro. E o lucro na saúde só é obtido pela restrição de acesso a exames, a procedimentos especializados e até a tratamentos que já são consagrados pela ciência médica. Várias tergiversações e armadilhas contratuais impedem que o paciente chegue a eles.
Além de serem perversas com os pacientes, as empresas que visam ao lucro na saúde exploram o médico de uma forma antiética, servindo-se, muitas vezes, de estímulos pecuniários para que o médico, com a sua autonomia, possa dificultar que o paciente realize os procedimentos necessários. O médico é, assim, usado como um porteiro, um mestre de obras, para que a definição de viver ou de morrer fique na sua mão, em vez de na mão da empresa, ao decidir se deve encaminhá-lo ou não a um especialista. Assim, a empresa fica livre de processos e de outros tipos de acusações. Márcia Rosa de Araújo Artigo em página do Conselho Federal de Medicna publicada em 29 de novembro de 2012