Recém-transferido para o sistema federal em fevereiro de 2019, era a primeira vez em décadas que Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, cumpria pena fora de São Paulo, seu estado de origem e de onde conduziu a fortificação da facção criminosa que chefia, o PCC.
Sem direito a visita com contato físico e isolado em uma cela 22 horas por dia, estava com o psicológico abalado. Foi nesse contexto que ele recebeu um recado que mudaria não só seu futuro, mas os rumos da segurança pública do Brasil.
Dois anos antes, o país havia atingido um pico de mortes violentas, o maior da história, em grande medida por uma guerra travada entre o PCC e o CV, segundo especialistas. Na tentativa de selar uma trégua entre os grupos, advogados enviados pelo CV procuraram Marcola na penitenciária para costurar um acordo.
Assim como o chefe do PCC, integrantes da quadrilha rival também estavam sob o rigoroso regime do sistema federal, que havia endurecido ainda mais as regras depois de receber integrantes da organização paulista.
Ao ouvir sobre o pedido de paz, Marcola teria respondido a Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, homem forte do CV, que o inimigo deles era o Estado, não o crime, e que eles deveriam, sim, se unir novamente.
Representantes do CV pediram então ao PCC para financiar ações jurídicas em benefício de ambos, com a contratação de juristas renomados para elaborarem pareceres que embasassem pedidos de redução no rigor do cumprimento das penas, como a volta das visitas fora do parlatório.
“O PCC liberou pelo menos R$ 10 milhões de seus cofres para pagar pareceres de juristas, custas judiciais e honorários de advogados. É importante deixar claro que esses não estavam trabalhando a serviço dessas facções, foram contratados por ONGs ligadas a presos”, conta o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo.
“A trégua fez com que praticamente cessassem as mortes nas penitenciárias e isso impactou positivamente no índice de homicídios no país. Não credito essa redução à política pública de nenhum estado do Brasil. O que houve foi um acordo de criminosos”, garantiu.
Execução pirotécnica
O relacionamento entre cariocas e paulistas começou a azedar em 2016. Um dos marcos da guerra ocorreu na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com Ponta Porã (MS).
O vídeo de uma câmera de segurança marcava 18h44 quando um Toyota Hilux prata parou em um cruzamento, em 15 de junho daquele ano. O veículo esperou ser alcançado, propositadamente, por um Hummer preto escoltado por três carros.
Dentro do Hummer estava o traficante brasileiro Jorge Rafaat Toumani, conhecido como “Rei da Fronteira”, na época o principal empecilho para o crescimento do PCC no país vizinho.
De repente, a porta traseira do Hilux se abriu e surgiu uma rajada de balas. A rua se iluminou com os tiros. A metralhadora .50 foi usada para perfurar a grossa blindagem do Hummer, em um procedimento digno de ataques perpetrados em zonas de conflito armado como Iraque e Afeganistão.
Os capangas de Rafaat, armados com pistolas automáticas e fuzis, não tiveram nenhuma chance diante dos mais de cem tiros disparados contra ele. A batalha durou dez minutos.
Aos 56 anos, Rafaat morreu cravejado por 16 balas, quase todas na cabeça. Entre arsenal, logística e pistoleiros, a operação custou, segundo estimativas do serviço de inteligência da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) do Paraguai, US$ 1 milhão.
Mais tarde, investigações concluíram que a morte foi planejada por um consórcio de criminosos, com participação de PCC, CV e de um poderoso aliado na fronteira, o traficante Jarvis Chimenes Pavão.
Estabelecer-se como força dominante no Paraguai foi o mais ousado lance de expansão do PCC em anos. O país é essencial ao esquema criminoso da facção. O clima e o solo do país são favoráveis ao cultivo da maconha.
De alguns anos para cá, os produtores locais adotaram em larga escala o plantio da planta transgênica: uma semente geneticamente modificada que reduziu o tempo de colheita, de 120 dias para 90 dias, e fez explodir a produtividade.
Além de importante fornecedor de maconha, com uma das maiores produções do mundo, o Paraguai funciona como base do tráfico da cocaína produzida na Bolívia, no Peru e na Colômbia. Em solo paraguaio, a droga é preparada e distribuída para o Brasil e países da África e da Europa. A fiscalização pífia, a corrupção e a impunidade facilitam o resto.
O CV foi o primeiro a chegar ao Paraguai, ainda na década de 1990. Naquele tempo, o sotaque arrastado e a cor de pele mais escura que a dos locais despertaram curiosidade – e colocaram a polícia em alerta. Em 1997, o traficante Fernandinho Beira-Mar fugiu de um presídio em Belo Horizonte para a região.
A maconha até então dominava o comércio ilegal, e a cocaína era um produto de menor escala no país. Beira-Mar associou-se a um importante produtor da região, a família Morel, e começou a despachar maconha e cocaína para o Rio de Janeiro e São Paulo.
O império carioca durou até a prisão de Beira-Mar na selva colombiana, em 2001. Com sua queda, o caminho ficou livre. Em 2005, uma reunião na mansão de um advogado paraguaio no centro de Pedro Juan Caballero marcou a entrada do PCC no Paraguai.
Na época tido como o homem forte da facção paulista, César Veron, o Cezinha, conduziu a conversa. “Queremos trabalhar, não queremos zoada”, disse na ocasião. “Não queremos chamar a atenção para a fronteira”, completou o chefão.
Ao encontro, compareceram em torno de 15 pessoas, entre forasteiros e bandidos locais. Rafaat era um dos presentes. Como é de praxe na conduta do PCC, a organização convocou a conversa para impor suas regras. Liberou os traficantes a continuar tocando seus negócios de forma independente, desde que silenciosamente.
Informou que, para isso, todo “serviço sujo” seria feito pela facção e que os locais deveriam dispensar seus pistoleiros. A reunião durou pouco mais de uma hora. Cezinha foi preso tempos depois, mas a organização já tinha se estabelecido.
Pacto chega ao fim
Até a morte de Rafaat, CV e PCC tinham uma espécie de pacto de não agressão, além de uma convivência pacífica. Na cadeia, presos das facções paulista e fluminense compartilhavam o mesmo pátio no banho de sol, jogavam futebol juntos e até dividiam cela.
Na rua, os criminosos das duas siglas eram parceiros em seus negócios ilegais. Atacadistas no mercado de venda de drogas, não só compravam do mesmo fornecedor, como também despachavam a mercadoria da fronteira com Paraguai, Peru, Bolívia e Colômbia para seus respectivos centros de distribuição nos estados em um mesmo carregamento.
“Havia cooperação na forma de negociações e uma espécie de pacto de não exclusividade em relação ao fornecimento de drogas e armas. Não é que o CV e o PCC formavam naquele momento uma organização unificada, com um comando centralizado. Mas havia esse pacto que acabava acomodando as diferenças. Em algum momento, essas diferenças foram ficando maiores, as disputas foram se sobressaindo com relação às negociações. E aí o conflito armado passa a ser inevitável”, explicou Daniel Hirata, pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Após o assassinato de Rafaat, um acordo não cumprido sobre as rotas contribuiu para que as organizações ficassem ainda mais estremecidas, indicam as investigações. Mas a cizânia teve início até antes. O pesquisador Bruno Paes Manso, autor do livro “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, conta que a tensão começou a surgir sobretudo nas prisões onde o PCC tinha certa predominância.
Uma troca de comunicados internos das facções (os chamados “salves”) interceptada na época pelos órgãos de inteligência mostrou que o PCC estava descontente com o CV, que vinha filiando presos ligados a grupos rivais à facção paulista em diferentes estados.
“Começou a haver uma série de desmandos e conflitos. Numa troca de cartas entre a chefia do PCC e do CV, o PCC cobrava essa aliança, esse suporte que o CV dava para aliados em outros estados. E o Marcinho VP respondia que ele não tinha controle sobre as lideranças dos outros territórios, que tinham autonomia, e que o Comando Vermelho não tinha condição de organizar ou de subjugar”, lembrou Paes Manso.
Naquele mesmo ano, “salves” indicando o rompimento entre os grupos começaram a pipocar. Integrantes do alto escalão do PCC, na época detidos na Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, enviaram um comunicado geral aos presídios dominados pela organização criminosa em junho. Em folhas escritas à mão, a cúpula declarou guerra à facção fluminense. Explicou que já havia tentado diálogo com a criminalidade carioca. Como não teve sucesso, decidiu partir para a briga.
Ação e reação
Em última instância, tratava-se de uma disputa pelo mercado da droga. Ao perceber que o domínio do comércio dependia de seu fortalecimento nos presídios, com uma expansão nacional, o PCC passou a arregimentar novos membros em outros estados brasileiros a qualquer custo. Nessa política agressiva de crescimento, tornou mais flexíveis as regras para o chamado “batismo”.
Começou a exigir só um e não mais três padrinhos, espécie de fiador do novo membro, e reduziu ou até extinguiu o pagamento mensal obrigatório em alguns locais do Nordeste. Se em São Paulo essa mensalidade chegava a R$ 1 mil por filiado, passou a cobrar R$ 400 em outros locais. Em partes, a estratégia deu certo. Em quatro anos, até 2018, o PCC ganhou 18 mil criminosos em São Paulo e demais estados brasileiros.
A facção só não contava que seus planos esbarrariam nas organizações criminosas de fora do eixo Rio-São Paulo, que passaram a impedir a chegada dos paulistas. Esses pequenos grupos locais, com regras e códigos de condutas próprios, muitas vezes não aceitam a imposição das normas rígidas dos forasteiros. O CV se aproveitou do mal-estar entre essas pequenas facções e os paulistas para formar alianças regionais. Em troca, esses grupos ganharam abrangência nacional e se fortaleceram na oposição ao PCC.
O reflexo do racha ficou evidente nos meses seguintes, durante a maior e mais mortal sequência de massacres do sistema carcerário da história do Brasil. As chacinas ocorreram em Roraima, Rondônia, Amazonas e Rio Grande do Norte, com saldo de mais de cem presos assassinados. As mortes, com decapitação e queima de corpos, eram gravadas e as imagens da barbárie, distribuídas amplamente pelo WhatsApp, em demonstrações de força. Rapidamente, a rixa se alastrou para a rua. Em 2017, o Brasil registrou o maior número de mortes violentas da história.
“Houve um período de bastante instabilidade depois da morte do Rafaat. O Comando Vermelho teve que se reorganizar e deslocar rotas e corredores para o fornecimento de drogas. Isso foi feito, sobretudo, mais ao Norte do país, com a resistência tanto do PCC como também de outros grupos que já estavam operando nesses lugares. Essas mortes todas têm relação justamente com essa reacomodação, com essa reorganização dos fluxos de mercadorias ilegais provenientes de outros países”, analisou Hirata.
Para Paes Manso, as características de cada uma das facções ajudam a explicar o processo de expansão e consolidação ainda em curso. Mais personalista, o CV permite uma organização autônoma de chefias regionais, funcionando como espécies de franquias. O PCC, por sua vez, faz parte de uma gestão mais hierárquica, com regras rígidas e uma cadeia de comando central a quem se deve obediência.
“O que está acontecendo agora é uma expansão mais rápida do CV para outros estados do Brasil. Isso porque cada chefe de estado ou representante tem uma capacidade de decisão mais vinculada ao seu contexto territorial. O CV está chegando na Bahia e na Paraíba, por exemplo, com muita força para controlar territórios”, disse Paes Manso.
Enquanto isso, o PCC está enfrentando um racha interno recente, um desafio como nunca tinha passado antes. Esse conflito também tem aberto espaço para o CV crescer.