Morando com a avó materna, Sônia de Fátima Moura, de 53 anos, no distrito de Anhanduí, no município de Campo Grande (MS), Bruno Samudio Souza, 9 anos, o “Bruninho”, filho do ex-goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, com Eliza Samudio, está com medo do pai, que foi solto após cumprir parte da pena pelo assassinato da mãe da criança.
Em matéria publicada pelo site UOL, que entrevistou Bruninho e a avó dele em São Paulo (SP), onde ambos passam uma curta temporada, a criança revelou um pouco do drama. “Que merda!”, gritou Bruninho enquanto envolvia a cabeça com as mãos e esfregava os olhos com força.
“Que foi, meu filho, que foi?”, correu a avó, Sônia, da cozinha, onde preparava a marmita do filho que, logo, sairia para trabalhar. “Eu tô com medo”, foi a resposta do menino. O diálogo aconteceu no último mês de julho, quando o goleiro Bruno Fernandes deixou a prisão para cumprir pena em casa.
Bruninho soube da notícia sem querer, enquanto assistia à televisão na hora do almoço. “Ele é só meu genitor”, diz a criança a todo mundo que pergunta. Não há raiva, nem rancor. Apenas medo. “Como vou ter ódio de alguém que não conheço?”, argumenta. E conclui, para encerrar o papo e eliminar qualquer dúvida: “Minha mãe é a Eliza”.
Do goleiro, Bruninho tem os pés, a covinha no queixo e a mania de arregaçar a barra das calças de moletom. Da mãe, o aconchego ao acariciar os cabelos da avó, a paixão por batata frita com ketchup, o time do coração (São Paulo) e o talento com a bola –esse herdado de ambos. “Minha filha era apaixonada por futebol. Quando criança, acertava toda a escalação do time do São Paulo, com os reservas. Jogava bola na rua todos os dias”, diz Sônia de Fátima.
Durante as cinco horas em que UOL esteve com avó e neto, o menino não parou de bater bola. A redonda batia no pé, no peito e, ufa, fugia dos porta-retratos da casa em que ele e a avó estão hospedados, em São Paulo (SP).
Enquanto o menino brinca, a avó revela que tentou evitar ao máximo que ele jogasse futebol e assume, até, que comemorou quando um dos seus três cachorros comeu uma das bolas que o neto tinha em casa. “Depois de muita conversa com a psicóloga, decidi não interferir mais. O Bruno Fernandes é uma pessoa, o Bruno Samudio, meu neto, é outra. Ele deve escolher o rumo da própria vida”.
Bruninho queria ser Gabriel
Bruno Samudio gosta de ser chamado, se possível, só assim. Ele nega o segundo sobrenome, “Souza”, do qual queria se desfazer. “Na verdade, ele me diz o tempo todo que queria se chamar Gabriel, que queria mudar de nome. Eu não vou fazer isso, de jeito nenhum. Se o Bruninho, quando for adulto, quiser fazer isso, vou respeitar. Mas não vou interferir no nome que minha filha escolheu”, diz a avó.
‘Levei meu neto para tirar o RG há alguns meses e ele teve de assinar o nome completo naquela partezinha ali embaixo. Escreveu só ‘Bruno Samudio’ bem grande para que não coubesse mais nada. Não adiantou: o atendente disse que precisaria colocar o ‘Souza’ também e ele fez um escândalo”, conta.
Do pai, Bruninho sabe pouco, mas o suficiente. “Um dia, se ele quiser, vai poder conhecê-lo. Ele diz: ‘Mãe Soninha, como vou confiar num cara que tentou me matar? Nem se ele me oferecer um refrigerante fechado vou aceitar’. Ele fala que tem medo do Bruno, sabe? Um dia, sei que será inevitável o encontro dos dois. Mas, se depender de mim, ele não chega perto do Bruninho”.
Bruno ovacionado pela torcida machuca
Entre os detalhes que a avó prefere evitar que o neto descubra está a volta do goleiro ao futebol. Bruno foi apresentado ao Poços de Caldas, de Minas Gerais, no último fim de semana e acabou ovacionado pela torcida. Sônia estava em casa quando recebeu a notícia, por meio de uma colega da igreja. “Ver pais levando os filhos para exaltar um assassino é uma inversão de valores. Eu acredito muito na ressocialização, inclusive na dele. Mas não no esporte. O esporte envolve ser ídolo e como um assassino vai ser ídolo de alguém?”, questiona.
Sônia insiste a cada sequência de perguntas que não tem mais ódio do homem que matou sua filha. Porém, admite o quão árduo foi este processo. “Ajoelhava e rezava, gritava, doía de um jeito que eu perdia a voz. Não saía, sabe? Quando o Bruninho era bebê, eu deitava na cama, ele, no berço, e fechava todas as janelas. Se eu pudesse sumir com ele para um lugar em que não tivesse gente, eu iria. Eu queria ficar só com ele. Se eu sentisse ódio do pai dele, automaticamente transferiria esse ódio para ele. Eu não podia odiar meu neto”.
Desde o assassinato da filha, em junho de 2010, a vida de Sônia é um alerta sem fim. À reportagem, garante que nunca desligou o celular desde que comprou: “Ah, há muitos anos já”. Se o neto foge dos olhos dela, a avó vira e revira a cabeça até encontrá-lo. E grita o nome, quando não consegue.
É sempre assim: ela chega à escola dez minutos antes de o sinal marcar o fim da aula. De dentro do portão, Sônia espera Bruninho todos os dias. “Ele vive perguntando quando vai poder ir à escola sozinho. Digo que, quem sabe, daqui uns seis ou sete anos. Quem sabe, hein?”.
Um grude com a avó
“Ele ri quando falo isso. A gente não se desgruda, ele é muito chegado comigo”, diz. Se Sônia acorda cedo, lá vai Bruninho ‘zumbizando’ atrás — não importa a hora. Naquele dia, o relógio marcava seis da manhã quando o menino levantou da cama, só dez minutos depois de a avó despertar com as galinhas. “Ele sente que eu não estou do lado”, diz Sônia.
Só que nem sempre o grude foi possível: quando Eliza foi assassinada, ela se mudou da cidadezinha onde morava no interior do Mato Grosso do Sul. Sônia, o filho mais novo, o neto e o marido passaram a morar nos fundos de um comércio cercado por um muro de 6 metros de altura. Lá atrás, numa portinha, ficava a casa da qual ela passou anos sem sair: de madrugada, o marido a colocava no carro e dava uma ou duas voltas no quarteirão, só para que pudesse ver meu neto um homem íntegro, honesto e bondoso”.
“Comecei a sair com o Bruninho há poucos meses, eu tinha medo de que o reconhecessem. E ele não gosta muito de sair comigo por esse motivo. Diz: ‘Mãe — ele me chama de mãe —, sempre que estou com você as pessoas descobrem quem eu sou’. E ele mesmo começou a criar suas próprias defesas: sempre que vê uma câmera, vira o rosto. Às vezes, é até grosseiro com quem pergunta alguma coisa sobre o pai. E não gosta de jornalista, não, viu? Fica bravo quando eu dou entrevista, diz que eu deveria parar de fazer isso porque sofro e que dói nele me ver sofrer”, afirma Sônia.
Sempre que a avó se emociona, Bruninho seca suas lágrimas com as mãos e, num desespero de afago, repete, atropelando a mesma frase, várias vezes: “Eu estou aqui, não chora, eu estou aqui com você, sempre vou estar”. Nesta entrevista, Sônia extravasou quatro vezes, em momentos alternados. Ora de raiva, ora de saudade. A avó de Bruninho chorou ao olhar para o sorriso da filha estampado em uma foto, e de raiva ao se lembrar do neto jogado numa casa em uma comunidade.
“Não é justo. Esse filho não pediu para vir ao mundo, minha filha não o fez sozinho. Ela teve o Bruno Fernandes para fazer o filho. É fácil culpar a mulher por ter engravidado. É um inocente que não tem voz para pedir um socorro. Me dói muito quando lembro todo o sofrimento do meu neto, tudo o que ele passou na mão deles”, desabafa.
As lembranças do sofrimento se manifestam na vida do menino. Segundo Sônia, há alguns gatilhos que o maltratam. “Ele não pode ouvir ninguém falar: ‘Perdeu, perdeu’. Um dia, um amigo do meu marido encontrou a gente na rua e fez essa brincadeira. O Bruninho começou a gritar, grudou no meu corpo…’Mamãe, mamãe, me ajuda’. O coração disparou. Depois descobri, com o processo, que quando minha filha foi sequestrada, ela estava no carro no banco de trás com o Bruninho. O primo do Macarrão sentou ao lado dela e gritou: ‘Perdeu, Eliza, perdeu’”.
O choro vem, enfim, em forma de alegria, quando Sônia relembra a primeira vez em que viu o neto. “Eu estava no conselho tutelar e ele estava em pezinho no colo de uma mulher, coberto por um paninho que eu puxei para deixar o rosto dele à mostra. Ele me olhou com esses dois olhões e abriu aquele sorriso. E eu o peguei, coloquei junto ao meu peito. Ele esfregava a cabeça em mim, olhava para mim e ria como se ele me conhecesse. Ele me cheirava e ria. Então foi assim, esse foi o momento que eu comecei a renascer. Renasço todos os dias desde então. Hoje, peço a Deus só uns dias a mais para que eu possa ver meu neto virar um homem íntegro, honesto e amoroso”.
Legado de Eliza
Poucos minutos bastam para categorizar a relação entre Bruninho e Sônia. As memórias do menino sobre a mãe são escassas, já que Eliza foi assassinada quando ele era um bebê com menos de seis meses. É recorrente a criança abordá-la como “mãe”, como ocorreu inúmeras vezes durante o encontro com a reportagem. Ao mesmo tempo, Sônia faz questão de manter o legado vivo da vítima do crime bárbaro envolvendo o ex-goleiro do Flamengo.
“Falo para ele que sou avó. A mãe dele se chama Eliza. Eu sou avó. Ele me chama de mãe, mas sabe que eu sou avó. Faço questão de lembrar para o Bruninho o quanto ele era amado e querido pela mãe. Digo: ‘Sua mãe lutou pela sua vida. Sua mãe te quis, sua mãe te amou’. Se ela estivesse com vida, ela seria a melhor do mundo para você”, discursa.
Sônia observa Bruninho brincando e revive. As lembranças da filha estão nos pequenos gestos do neto. “Dá saudades. Às vezes sonho com ela. Chamo o Bruninho e, quando ele vira o olho para mim, assim, de baixo para cima, vejo o olhar da mãe dele. Ele se parece bastante com ela”.
Ao mesmo tempo em que aquece o coração ao se lembrar da filha, Sônia luta para manter a dignidade de Eliza. Ela evita ler comentários ofensivos, comuns em redes sociais e em reportagens envolvendo o nome dela, mas faz questão de manter o legado da modelo. Por Bruninho; e para Bruninho.
“Eu já fui humilhada muitas vezes, isso hoje não me incomoda mais. Quer me xingar? Me xinga. A minha filha não está aqui para se defender e o que ela fez da vida dela é uma escolha dela. Eu não tenho culpa pelas escolhas que minha filha fez. Eles podem falar o que quiserem. Espero que no futuro respeitem um pouco mais a Eliza”, encerra, enquanto observa Bruninho correr e brincar, livre e sem medo.
Relembre o caso
Eliza Samudio, modelo e mãe do filho do goleiro Bruno, foi morta por asfixia e esganadura em 10 de junho de 2010. A modelo teve o corpo, até hoje não encontrado, esquartejado pelos assassinos.
O ex-jogador do Flamengo acabou condenado a 22 anos e três meses de prisão por homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação do cadáver. Desde julho, está fora da cadeia e agora tenta retornar ao futebol profissional em Minas Gerais.