Igreja Universal cria “big brother financeiro” e exige de pastores solteiros faturas e extratos bancários

O Portal UOL divulgou nesta quinta-feira (19) que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) criou uma espécie de “big brother financeiro” para controlar a vida financeira dos seus pastores solteiros.

De acordo com a reportagem, os pastores solteiros afirmam que estão sendo obrigados pela Igreja Universal do Reino de Deus a entregar uma cópia de seus extratos bancários e faturas de cartões de crédito dos últimos dois anos, além de apresentar uma lista de bens que possuem.

Desde o fim do ano passado, pastores têm sido chamados a salas reservadas nos templos da Universal para assinarem um documento chamado “declaração”, no qual se afirma que o signatário cederá seus dados financeiros e patrimoniais “por livre e espontânea vontade”.

“Declaro também, para os devidos fins de direito e sob as penas da lei, que concedo, por livre e espontânea vontade, à Igreja Universal do Reino de Deus na pessoa de seus oficiais (Bispos e Pastores), o acesso aos extratos das minhas contas correntes bancárias (ativas ou não) e aos extratos das minhas contas poupança – caso existam (ativas ou não), bem como às faturas dos meus cartões de crédito (ativos ou não) dos últimos dois anos, contados a partir da assinatura desta declaração”, afirma-se no documento obtido, com exclusividade, pelo UOL.

O documento ainda prevê que a Universal colete todos os dados pessoais dos pastores “para que possa armazenar, acessar, consultar, avaliar, controlar e utilizar todos esses Dados Pessoais em seus servidores e arquivos, de forma a possibilitar a tomada de decisões pela IURD acerca da minha atuação como Ministro Religioso.”

E em um trecho seguinte, os pastores dão consentimento para que a Universal “colete, armazene e realize outras operações de tratamento com determinados dados pessoais sensíveis referentes a mim, especialmente informações relacionadas à minha convicção religiosa, à minha filiação a organizações de caráter religioso e às minhas experiências e atividades religiosas e espirituais, especialmente aquelas realizadas no âmbito da minha relação com a IURD (“Dados Pessoais Sensíveis”).”

Procurada para se pronunciar, a Igreja Universal não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. Em vez disso, uma assessora enviou como resposta um versículo 11 do capítulo 5 do livro do Evangelho segundo Lucas, do Novo Testamento da Bíblia. “E disse Jesus a Simão: Não temas; de agora em diante serás pescador de homens. E, levando os barcos para terra, deixaram tudo, e O seguiram.”

Pressão

Integrantes da Universal, ouvidos pela coluna sob a condição de anonimato, afirmam que se sentem pressionados a abrir mão de seus sigilos bancários, uma garantia constitucional, sem que ao menos uma explicação seja dada pela direção da instituição religiosa.

Um membro da Universal afirmou que recebeu uma recomendação de ir à agência bancária, pedir os extratos ao gerente da conta, mas não revelar que seriam entregues à direção da instituição religiosa.

Ainda de acordo com os relatos ouvidos pela coluna, somente os pastores solteiros e que estão prestes a se casar têm sido chamados para assinar a declaração, junto com suas noivas. A ação tem sido realizada em todos os estados brasileiros.

Aqueles que questionam o motivo da exigência da Universal ou se recusam a assinar o documento são pressionados internamente a deixar o posto de pastor. A Igreja Universal foi fundada em 1977 pelo autointitulado bispo Edir Macedo. A instituição conta com cerca de 10 mil templos, 14 mil pastores espalhados por ao menos 95 países ao redor do mundo.

Na hierarquia da Universal, uma pessoa pode começar fazendo o chamado CPO (curso preparatório para obreiros), depois se torna um colaborador, depois de um tempo passa a ser obreiro, um auxiliar do pastor. Se apresentar certas qualidades pode ser convidado a se tornar um pastor e é matriculado em um outro curso de formação. Um pastor passa a receber um salário de pelo menos R$ 2.000 brutos (sem considerar os descontos). O próximo passo é se tornar um bispo.

O documento da Igreja Universal afirma que a instituição pode agir de acordo com suas próprias regras, sem a intervenção do Estado, já que a Constituição brasileira concede liberdade religiosa a todos cidadãos.

Na declaração, lê-se ainda que Edir Macedo assumiu “a missão de pregar o Evangelho, contido na Bíblia Sagrada, para conhecimento e resgate de todo ser humano, seja no território brasileiro ou em outros países.”

“Para essas pessoas, Edir Macedo como líder espiritual que é, bem como os demais Ministros Religiosos são exemplos de assistência religiosa, de modo que a cada ano a IURD cresce e se fortalece propagando o Evangelho, ganhando almas pelos quatro cantos do mundo”, lê-se no documento.

De acordo com o último ranking de bilionários da revista Forbes, Edir Macedo, 79, tem uma fortuna estimada em 2 bilhões de dólares (cerca de R$ 10,8 bilhões, na cotação atual).

Ainda no documento, os pastores declaram que a Universal é uma instituição religiosa, sem fins lucrativos e que a colaboração deles com a igreja “se dá em razão do meu desejo de ganhar almas, em razão da minha vocação, desta liberalidade e disponibilidade de assistir ao próximo, de ajudar ao necessitado, ao oprimido, ao carente, ao sofrido”.

A Constituição Federal consagra a privacidade e a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Esses princípios fundamentais, por extensão, abrangem o direito ao sigilo e à inviolabilidade das informações financeiras, incluindo os sigilos fiscal, bancário e de investimento.

“O Supremo Tribunal Federal, de forma pacífica, firmou o entendimento sobre a “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, ou “dimensão objetiva dos direitos fundamentais”. Tal doutrina estabelece que os direitos fundamentais não se aplicam apenas nas relações entre indivíduo e Estado (eficácia vertical), mas também nas relações entre particulares (eficácia horizontal)”, afirma o advogado Raphael Andrade Sousa, especialista em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas.

Sousa, que professa a fé cristã, afirma que a Universal não pode exigir informações financeiras de seus funcionários independentemente da justificativa técnica ou religiosa apresentada. Ele leu o documento a pedido da coluna.

“A exigência indiscriminada dessas informações constituiria uma violação dos direitos constitucionais à privacidade e ao sigilo financeiro”, diz Sousa.

Especialista em compliance e boas práticas, a advogada Maria Fernanda Ávila afirmou que a nossa legislação protege de forma especial o direito ao sigilo bancário, em nome dos princípios constitucionais da intimidade e da proteção de dados pessoais.

“Ademais, a legislação trabalhista impede que seja exigida a apresentação de dados que possam vir a caracterizar discriminação nos processos seletivos. Seja pela perspectiva constitucional de proteção à privacidade, seja pela perspectiva trabalhista ou pela lógica da Lei Geral de Proteção de Dados (que dá autonomia ao titular dos dados pessoais), me parece que essa exigência não encontra guarida no nosso ordenamento jurídico.”

Vai vendo!!!