Por Vasconcelo Quadros, de Brasília
Em meio à imagem de potência verde que o agro vende ao mundo, o Brasil convive com um submundo bilionário: um quarto dos defensivos agrícolas usados nas lavouras tem origem ilegal. Mato Grosso do Sul lidera as apreensões, consolidando-se como corredor preferencial do contrabando vindo do Paraguai. Especialistas alertam para a infiltração do crime no setor, que pode repetir no etanol de milho o mesmo padrão que marcou a cana-de-açúcar.
Segundo o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF), cerca de 25% dos defensivos agrícolas comercializados no país são ilegais — algo em torno de US$ 3,5 bilhões dentro de um mercado total de US$ 14 bilhões.
Suspeitos de integrar esquema de furto de defensivos agrícolas são presos
Os dados mais recentes da Polícia Federal, resultado da Operação Controle, reforçam a relevância de Mato Grosso do Sul como corredor do contrabando. O Estado concentra 35% a 40% das apreensões nacionais, principalmente em municípios situados na faixa de fronteira com o Paraguai como Ponta Porã, Mundo Novo e Dourados. Em 2023, foram confiscadas 575 toneladas de agrotóxicos ilegais — aumento de 180% em relação a 2022 — e apenas no primeiro trimestre de 2024 já se somavam 345 toneladas, indicando a intensificação contínua das operações.
Além de Mato Grosso do Sul, os estados mais afetados são Paraná (20% a 25%), Rio Grande do Sul (15% a 20%) e Mato Grosso (10%), que funcionam como pontos de trânsito e destino final das cargas ilegais. Os casos mais recentes, entre novembro de 2023 e março do ano passado. incluem a apreensão de 20 toneladas em Dourados, 5 toneladas em Guaíra (PR) e 1,5 tonelada em Uruguaiana (RS).
“Não se trata apenas de sonegação ou de pequenas falsificações. É crime organizado, com logística, armazenamento e distribuição bem estruturados”, afirma o engenheiro agrônomo Renato Seraphim, especialista em rastreabilidade agrícola e membro do Comitê Estratégico Soja Brasil. “O produtor que compra sem nota é cúmplice. E o crime compensa porque ninguém fica preso.”
Segundo ele, o contrabando é favorecido pela diferença tributária entre Brasil e Paraguai e pela ausência de um sistema nacional de rastreabilidade digital. “O custo Brasil facilita a falsificação. Se os preços fossem equilibrados, ninguém compraria produto falsificado. Precisamos de controle eletrônico desde a indústria até o receituário agronômico.”
Polo da ilegalidade
O Paraguai tornou-se o grande polo de formulação de agroquímicos ilegais, amparado por uma legislação flexível e carga tributária reduzida. “Lá é possível registrar e produzir um novo produto em dias, enquanto aqui o processo é lento e caro. Por isso as cargas atravessam o rio Paraná e entram por Ponta Porã e Naviraí, seguindo para o centro do país”, explica Seraphim.
Além dos defensivos, outros produtos cruzam a fronteira sem controle, como máquinas, peças agrícolas e antenas Starlink, aproveitando o diferencial de preços e a fragilidade da fiscalização. “Toda caminhonete que circula em Mato Grosso do Sul tem um Starlink — e se você perguntar onde foi vendido, não foi no Brasil”, completa.
As rotas do contrabando de agrotóxicos são as mesmas usadas por cigarros e eletrônicos. “É um negócio de baixo risco penal e alta rentabilidade. A Polícia Federal age pontualmente, mas falta presença do Estado. A impunidade institucionalizou o problema.”
Um dos indícios do avanço do mercado ilegal é o uso de agrotóxicos em áreas indígenas, algo impossível sem fraude. “Nenhum veneno pode ser aplicado sem receituário agronômico, com localização, cultura e dose registradas”, explica Seraphim. “Se há produto sendo usado em área indígena, é contrabando. Não tem como ser legal.”
Segundo ele, a prática é sinal de uso clandestino para abertura de áreas irregulares, o que pode envolver conivência local e falsificação de documentos técnicos. “Há um agrônomo assinando algo que não poderia. Isso mostra que a cadeia criminosa não para na fronteira.”
No mês passado, indígenas ocuparam área, em Caarapó, em protesto contra a pulverização de agrotóxicos, que, segundo eles, tem causado adoecimento e gerado insegurança hídrica e alimentar para a comunidade. A revolta na Fazenda Ipuitã foi reprimida pela polícia militar, que retirou a comunidade da área em 28 de setembro.