Por Ernesto Ferreira
Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere.( Não rir, não lamentar, nem amaldiçoar, mas compreender.)
Spinoza.
…por enquanto, desisti de escrever – já existe um excesso de verdade no mundo – uma superprodução que aparentemente não pode ser consumida!
Otto Rank
As duas citações acima são de Ernst Becker, em ” A negação da Morte”, editora Record, ganhador do Pulitzer de 1974, livro que aborda a finitude humana a partir de uma abordagem psicológica, através de uma síntese entre as Ciências Humanas e a Religião. Becker afirma que escreveu um denso volume não para apresentar novas verdades, apenas trazer uma nova compreensão que os colocasse numa perspectiva sem as estéreis polêmicas, sempre ignorantes. Becker ainda apresenta ao seus leitores, sua interpretação da obra de Otto Rank, brilhante psicanalista contemporâneo de Freud, principalmente de “Art and Artist”, seu mais destacado livro, que, para Becker, estava acima de elogios, tamanha sua genialidade.
Toda essa longa introdução, meu paciente leitor, serve apenas para deixar claro que, desde o primeiro artigo que escrevi nesse espaço, não tive outros intentos que não apresentar verdades bem estabelecidas na longa trajetória histórica das várias sociedades humanas e, em particular, da nossa própria sociedade brasileira, sem pretensões, de modo similar à Rank, de acrescentar novas verdades, pois me parece que é a incompreensão continuada a causa de nossas piores mazelas. É com isso em vista, que hoje pretendo voltar a enfocar a mazela mais horrenda de todas as que nos afligiram e que, apesar de toda a luta de muitos de nós, ainda causa grandes problemas no nosso turbulento presente. É claro que estou falando da escravidão, esse terrível instituto que no último texto compunha a descrição poética do inferno em nossa terra, na voz do poema ” Navio Negreiro “, de Castro Alves, a quem aproveito para render justas homenagens e créditos, negados anteriormente por puro descuido meu. Acredito que ninguém escreveu páginas mais honestas sobre essa mazela que Joaquim Nabuco, nosso grande estadista pernambucano do tempo do segundo Império, que transcrevo a seguir: “…Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc dimitis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo. É que tanto a parte do senhor de escravos era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio bsem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
(…)
Oh, os Santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor! …, aos vinte anos , formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de bondade…”.
Diante do horror da escravidão, verdade essencial desse país, inferno terreno a nos atormentar enquanto não for redimido pela aceitação madura de uma nação enfim civilizada, palavras como essas podem ajudar a construir em cada um de nós a força, a coragem e a ternura requeridas para lograr superar no aqui e agora, as enormes injustiças sociais que, lamentavelmente, não cansamos de exibir, provas cabais dessa profecia do nosso grande estadista ” A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil “. Não tenho dúvidas de que os atuais acontecimentos políticos que vivemos são, na sua mais profunda essência, a reedição da luta entre senhores de mentalidade escravistas contra um povo generoso, identificado como escravo sem direito à alforria. Que o leitor identifique uns e outros.