O cadáver que ano passado plantaste em teu jardim já começou a germinar?

Por: Ernesto Ferreira

 

O cadáver que ano passado plantaste em teu jardim já começou a germinar? Dará flores este ano?
Ou a súbita geada danificou-lhe a cova?
Oh, mantém o cão à distância, ele é amigo do homem,
Ou com as unhas o desenterrará,
Tu! Hypocrite lecteur! – mon semblable, – mon frère!
Trechos do poema Terra Desolada, de T.S. Eliot.

A mensagem inaugural do mês de abril é dedicada não tanto à vida como comumente a vivenciamos mas, à morte e àqueles que morreram, transformados em espectros que vivem entre nós, quase sem que os notemos. O excerto que se segue, foi retirado do brilhante ensaio do filósofo Giorgio Agamben, ” Da utilidade e dos inconvenientes do viver entre espectros”. Com a liberdade do poeta Eliot, que afirma nossa hipocrisia diante da morte e de seus espectros, eu vou tentar perscrutar, ler as assinaturas escritas ou sussurradas dolorosamente em línguas mortas, pelos seres que vagam em nossa terra desolada. O que eles querem dizer a nós, os vivos?

” De que é feito um espectro? De signos, aliás, mais precisamente de assinaturas, isto é, daqueles signos, cifras ou monogramas que o tempo arranha sobre as coisas. Um espectro traz sempre consigo uma data, ou seja, é um ser intimamente histórico. O que devemos ao que morreu? ‘ o ato de amor de recordar um morto’, escreve Kierkegaard, ‘ é o ato de amor mais desinteressado, livre e fiel.’ Mas certamente não o mais fácil. O morto, de fato, não apenas não pede nada, mas parece fazer de tudo para ser esquecido. Precisamente por isso, porém, o morto é talvez o objeto de amor mais exigente, em relação ao qual estamos sempre desarmados e inadimplentes, em fuga e distraídos. ” talvez, resida aí, nossa imensa dificuldade de redimir por meio do amor, nossa longa, bela e trágica história.

Quem são os mortos que amo e que desejo que sejam amados por você, improvável leitor que, comigo compartilha essa serena ansiedade por esse encontro? São todos àqueles que viveram em nossa terra, desde que o antigo homem africano adentrou à esse lugar e aqui se fixou, nascendo sem saber onde estava, vivendo na espera de sua morte sem tempo para ocorrer, transformando-se em dos espectros que povoam em silêncio nossas planícies, planaltos, serranias e pantanais, em sua maioria gente comum, que aspirava apenas à um átimo de tempo e de um parvo lugar, nos quais inscrever sua vida.
Para Agamben, a espectralidade é uma forma de vida, uma vida póstuma ou complementar, que começa somente quando tudo acabou e que tem, por isso, em relação à vida, a graça e a astúcia incomparável daquilo que é completo, a elegância e a precisão de quem não tem mais nada diante de si. Ele, no entanto, alude à outro tipo de espectro, que chama de larval, que nasce da não aceitação da própria condição, da sua remoção para fingir-se a todo custo um peso e uma carne. São essas as larvas que procuram obstinadamente os homens por cuja consciência malvada foram geradas, para habitá-los como pesadelos ou súcubos, para mover de seu interior os membros exânimes com fios de mentira. Enquanto a primeira espécie de espectros é perfeita, porque não tem mais nada a acrescentar ao que fez ou disse, as larvas devem fingir-se um futuro para darem lugar, na verdade, a uma raiva no que diz respeito ao seu passado e à sua incapacidade de se saberem acabadas. Meu amor é pelos espectros perfeitos, aos quais dedico minha fidelidade; às larvas que insistem em parasitar nossa terra, dedico minha crítica histórica, denunciando sua impostura no tempo e no espaço, sua língua que fala e escreva mal, suas leis que simulam uma democracia larval, sem direitos de fato, suas religiões sem piedade, construídas que foram sem as tumbas que ornam nossas colinas, sua história “pós histórica” e ” pós moderna”.

Quero sonhar com um abril vindouro mais justo e pacífico, em que nossos mortos que tiverem que ser enterrados, nos deixem plenos de amor e de esperança e que, possam ser novos espectros perfeitos a rondar nossa terra, reanimada pelos seus silêncios e ornada pelas suas assinaturas imortais.