Sim, para fora desse mundo não cairemos. Simplesmente estamos nele.

In this photo released by the Sigmund Freud Museum in Vienna former Austrian psychoanalyst Sigmund Freud is pictured in his working room in 1938. Austria and the world will be celebrating Sigmund Freud's 150th birthday on Saturday May 6, 2006. (AP Photo/Sigmund Freud Museum)

cristiangrabbePor: Ernesto Ferreira

Sim, para fora desse mundo não cairemos. Simplesmente estamos nele.

Christian Dietrich Grabbe.

O último texto enviado ao oceano, findava com a possibilidade de uma verdadeira civilização emergir em nosso tempo. Pode o leitor argumentar que várias civilizações se constituíram ao longo da história, estudadas e classificadas pela chamada ciência histórica. Não sou historiador de ofício, vou me contentar em abordar o tema a partir da perspectiva da pessoa comum que procura um significado na história para ajudar a construir, ou manter, a sua própria civilização.

Com esse objetivo, ofereço, inicialmente, a contribuição de Sigmund Freud sobre o tema, exposto em sua obra mal estar na civilização. Para Freud, o  traço que melhor caracteriza a civilização é a estima e o cultivo das atividades psíquicas mais elevadas, das realizações intelectuais e artísticas, do papel dominante que é reservado às idéias na vida das pessoas, sejam elas de natureza religiosa, filosóficas ou mesmo construções ideais dos homens, suas concepções de uma possível perfeição dos indivíduos particulares, do povo, de toda a humanidade, e as exigências que colocam a partir dessas concepções. Quer essas realizações do espírito humano sejam vistas como a sua maior realização, quer sejam deploradas como equívocos, é mister reconhecer que sua existência, em especial seu predomínio, indica um elevado grau de civilização. Continuando, Freud afirma que o mais importante fato psíquico que possibilita a emergência da civilização, é a renúncia instintual, que implica em supressão, repressão e outras coisas mais.

Essa ” frustração cultural ” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens e, parece ser a causa da hostilidade que todas as culturas têm de combater.

Freud prosseguiu descrevendo como surgiu e se desenvolveu esse processo mas, para o meu pequeno objetivo de momento, me parece ser o bastante o que dele peguei emprestado. Faço um corte brusco e repentino, volto-me para o presente histórico que se desenrola em nosso país. Que significados civilizatórios estão presentes? É possível afirmar que estamos vivendo numa civilização brasileira? Essas perguntas têm vivido comigo há longo tempo. Busquei respostas em livros, autores, pensadores, em pessoas comuns que compartilham comigo o tempo e o espaço. Não reúno autoridade para fechar  questão quanto às ansiadas respostas. Tenho apenas para oferecer ao meu  leitor, meus afetos e preferências por algumas respostas e, até mesmo algumas perguntas, que julgo significativas. Na questão histórica, valorizei muito a pequena reflexão de Leonardo Boff, escrita acerca das homenagens aos tais quinhentos anos do achamento do Brasil pelos portugueses, em que ele analisava a nossa história a partir de três perspectivas diferentes, a de quem estava na praia quando eles aqui aportaram, a de quem estava nas caravelas e, a de quem está aqui hoje.

Para mim, que estou, obviamente, na terceira perspectiva, só pode algum significado ser construído se eu puder me colocar na perspectiva dos dois outros lugares. Sei o quanto é difícil mudar de perspectiva mas, como lembrou Freud é preciso renunciar ao instinto para construir uma cultura elevada, civilizada. Vou fazer a tentativa, tentar ouvir e perscrutar o silêncio do passado, registrar os ecos de suas vozes, priorizar e redimir às que foram caladas e vencidas, pois são as que se encontram ausentes, ou são muito débeis, no presente.

claudestraussQuanto às duas primeiras perspectivas, vou começar com a provocação que o antropólogo Claude Lévi Strauss fez em seus tristes trópicos, qual é a civilização em estágio superior, àquela que diante do seu semelhante faz a seguinte pergunta: homem como eu ou um animal que fala? Ou, àquela que, na mesma situação, pergunta: homem como eu ou Deus? Para o leitor, não deve ter sido difícil identificar as origens das perguntas, no primeiro caso, era a dúvida dos que estavam nas caravelas sobre quem estava na praia e, no  segundo, era a dúvida dos que estavam na praia sobre àqueles que estavam nas caravelas. Tenho estima pela dúvida dos antigos habitantes das praias brasileiras, ela me instiga mais a refletir, produz especulações que julgo mais elevadas, me faz sentir uma maior proximidade de uma civilização que desejo ver construída no nosso país.

Ainda, no tocante à primeira perspectiva, quero trazer ao leitor, a genial síntese do pensador Darci Ribeiro, que via o índio brasileiro como um judeu, no preciso sentido dialético do termo judeu, aquele que possui em si mesmo as qualidades do particular e do universal, sendo ao mesmo tempo índio e brasileiro, tal como Freud, que era ao mesmo tempo judeu e Alemão. Essa síntese, me parece extraordinária, porque valoriza a  contribuição dessa grande civilização que nossa terra abrigou, à qual espera pelo reconhecimento de nós, que estamos aqui e agora, devolvendo-lhe a dignidade roubada e, ainda negada no presente.

Quanto à terceira perspectiva, me permito subverter e mesmo enlouquecer a noção de tempo, incluir várias gerações nas suas entranhas, todas herdeiras desse encontro histórico, com seus significados tão díspares, conforme a perspectiva adotada. Em os Sertões, Euclides da Cunha, se utiliza dessa perspectiva num sentido ideal, dando voz e feição heroica,  ao povo sertanejo que resultou do achamento, considerando-o parte essencial da constituição do que podemos chamar de cultura brasileira, em contraste com os que viviam nas terras litorâneas, ocupadas pelo que ele denominou elite parasitária, claramente um elemento hostil à essa civilização nascente, que erigira seus valores em torno de uma religiosidade simples e popular. O grande escritor, dedica sua obra à luta desse povo. Ainda nesse sentido, quero compartilhar com meus leitores, um pouco da obra de Graciliano Ramos, que valorizou de tal maneira a perspectiva dos que estão aqui, que afirmou ser necessária a tradução para o idioma português seu livro de nome Caetés, escrito em brasileiro. Para ele, somos um povo marcado pela opressão de uma cultura  importada, que traz em seu centro a dúvida persistente dos colonizadores europeus, reproduzida pelos que se sentem seus herdeiros.

No entanto, há em sua obra, o heroísmo trágico de Fabiano, as sutilezas psíquicas de sinhá Vitória, a predizer a identidade já incrustada nesse povo, que é, em minha opinião, o traço marcante de nossa civilização, visto sua origem cruzada, indígena, negra e branca, herdeira do trauma constitutivo de nossa história, síntese civilizadora das hostilidades culturais oriundas das repressões e supressões, citadas por Freud.

Tenho a esperança de que esse povo cruzado que é a maioria desse país, possa ser o protagonista principal nesses explosivos acontecimentos que presenciamos, me parece o único que possui a síntese das três perspectivas, arranjadas de modo justo, porque ligadas entre si  com fortes elos de uma história compartilhada.