Denunciada maracutaia na licitação do transporte urbano na gestão do ex-prefeito Nelson Trad

O que todo mundo já desconfiava agora poderá ser comprovado: a licitação do transporte coletivo urbano de Campo Grande está incluída em esquema fraudulento.

 Documentos obtidos com exclusividade pelo G1 evidenciam a existência de um esquema de fraude em licitações de transporte coletivo urbano que operou em Campo Grande e outras 18 cidades de sete Estados e do Distrito Federal com o objetivo de favorecer, principalmente, empresas de duas famílias – Constantino e Gulin.

 Na Capital, formado por empresas que já atuam no transporte coletivo, o Consórcio Guaicurus venceu, em 2012, a licitação para explorar o serviço por mais 20 anos. A previsão de faturamento ao longo dos anos era de R$ 3,4 bilhões. Conforme o edital, na época, a receita anual é de R$ 172.085.012,40.

 O consórcio é composto pela Viação Cidade Morena (empresa líder), Viação São Francisco, Jaguar Transportes Urbanos e Viação Campo Grande, que, atualmente, formam a Assetur (Associação das Empresas de Transporte Coletivo Urbano). O consórcio seria ligado à família Constantino.

O ex-prefeito Nelson Trad Filho se defendeu e disse que não houve irregularidade.

 

Entenda a denúncia

Entre os documentos obtidos pelo G1, há troca de e-mails entre empresários, advogados e funcionários de prefeituras sobre a elaboração de editais de forma a atender os interesses das empresas nas licitações.

Em alguns casos, os editais – que deveriam ter sido feitos pelas prefeituras – são redigidos pelos próprios empresários e advogados meses antes do anúncio oficial da licitação.

As informações põem sob suspeita licitações em Brasília e em cidades de Santa Catarina, Paraná, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Pará (veja abaixo como o suposto esquema operava e cidades envolvidas).

Várias das supostas ações fraudulentas indicadas nas mensagens por e-mail e obtidas pelo G1 foram denunciadas ou já tiveram investigações abertas pelos ministérios públicos nos estados.

De acordo com investigações conduzidas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Paraná, há documentos suficientes para indicar a existência de uma “organização criminosa muito bem estruturada” que fraudava licitações em diversas cidades do país.

“Elementos que foram apreendidos em várias cidades do Paraná, em Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal ainda estão sendo entregues. Nós já começamos a receber os elementos de quebras de sigilo bancário e fiscal. O volume de documentos é muito grande”, explicou a promotora Leandra Flores, do MP do Paraná. “Temos que analisar a coincidência desses grupos econômicos atuando de forma conjunta e concomitante em várias cidades”, declarou.

Na solicitação à Justiça, em fevereiro deste ano, de pedidos de prisão preventiva, de condução coercitiva e de busca e apreensão referentes ao caso de Guarapuava (PR) – que levou às prisões de parte dos envolvidos, soltos posteriormente –, promotores do Gaeco já afirmavam que os e-mails apontavam para a prática de crimes em várias cidades.

 “Este Núcleo Regional do GAECO, por meio de cumprimento de mandado de busca e apreensão de dados eletrônicos expedido por este Juízo logrou êxito em obter junto ao servidor de e-mails da empresa LOGITRANS – Logística Engenharia e Transportes Ltda. inúmeras mensagens eletrônicas que demonstram, em tese, a prática dos crimes praticados em Guarapuava e em diversos outros Municípios”, diz trecho do pedido assinado pelos promotores Vitor Hugo Nicastro Honesko, Leandra Flores, Mauro Alcione Dobrowolski e Cláudio Cesar Cortesia.

O suposto esquema

 Na maioria das cidades envolvidas, o esquema funcionava da seguinte forma, segundo as investigações:

 >> A empresa Logitrans, que já teve entre seus diretores o engenheiro Garrone Reck, era contratada pelas prefeituras para fazer estudos de logística e projeto básico de mobilidade urbana.

>> O filho dele, Sacha Reck, atuava na concorrência como advogado ou assessor jurídico de empresas de ônibus interessadas em explorar as linhas.

>> Os documentos mostram que Sacha Reck obtinha informação privilegiada sobre as licitações e atuava na elaboração dos editais, orientando ou seguindo orientações dos empresários sobre cláusulas que deveriam constar nos documentos.

>> Os editais a serem publicados pelas prefeituras eram elaborados por advogados ligados ao escritório de advocacia de Curitiba do qual Sacha Reck era sócio e por ao menos um engenheiro, que fazia a avaliação técnica das propostas das empresas.

Documentos com ‘xxxx’

De acordo com os documentos obtidos pelo G1, a advogada Danielle Cintra, de Curitiba, ajudou na elaboração de vários editais sob suspeita. Ela enviava os documentos a Reck e a empresários já em papel timbrado das prefeituras e com os trechos a serem preenchidos ou marcados com cores ou “xxxx”.

O engenheiro Fábio Miguel, da Turin Engenharia, era contratado com regularidade pelas prefeituras, em negociações intermediadas por Sacha Reck, para que fizesse a avaliação técnica das propostas das empresas participantes da concorrência.

Os e-mails revelam que Miguel repassava a Sacha Reck o rascunho dos pareceres, para que o advogado “revisasse” os documentos antes de serem encaminhados às prefeituras.

Prisões

Parte dessas conversas, obtidas com autorização da Justiça por meio de busca e apreensão na Logitrans, embasaram a prisão preventiva de Garrone Reck, de sócios dele e de Sacha Reck no dia 29 de junho, na Operação Riquixá, que apura fraudes no sistema de transporte coletivo em licitações de Foz do Iguaçu, Guarapuava e Maringá, todas cidades do Paraná.

O G1 teve acesso ao pedido de prisão, que lista parte dos e-mails obtidos pela reportagem e aponta a existência do mesmo esquema de fraude em outras regiões do país.

Segundo o texto dos pedidos de prisão feitos à Justiça em fevereiro por promotores do Gaeco do Paraná, “existem sérios indícios de que os investigados ligados à LOGITRANS se uniram a empresários do ramo de transporte público (especialmente ligados aos Grupos empresariais/familiares GULIN e CONSTANTINO) para supostamente fraudar procedimentos licitatórios de concessão de transporte coletivo, ocasião em que possivelmente corrompem agentes públicos que necessariamente devem participar das fraudes para o seu êxito, configurando uma verdadeira organização criminosa”.

De acordo com o que afirmam no texto os promotores, as investigações indicam que “essa suposta organização criminosa formada pelos representantes da LOGITRANS e pelos Grupos GULIN e CONSTANTINO (além de outros que eventualmente sejam descobertos nesta investigação) atua em diversos municípios brasileiros, especialmente no Estado do Paraná, concluindo-se que o modus operandi utilizado nas práticas criminosas é muito similar”.

‘Confidencial’

Em Marília (SP), os documentos obtidos pelo G1 (veja trecho na imagem acima) indicam que Sacha Reck e empresários de ônibus elaboraram até mesmo o projeto de lei municipal que autorizou a concessão, em 2010. A licitação ocorreu em 2011, com vitória da Viação Cidade Sorriso e da Grande Bauru, empresas das famílias Gulin e Constantino.

Em 3 de maio de 2010, o empresário Pedro Constantino encaminhou a Sacha Reck e-mail que recebeu do deputado estadual de Minas Gerais Deiró Marra (PSB) com a minuta de um projeto de lei de Marília que autoriza a prefeitura a contratar, por regime de concessão, empresa para operar transporte coletivo na cidade.

Deiró Marra é dono da empresa de logística Grupo PHD. No e-mail a Sacha Reck, com assunto “confidencial, restrito a nós”, Pedro Constantino pede que o advogado faça “considerações, análises e modificações” na minuta.

Ao longo de 2010 e 2011, e-mails apontam que o advogado e empresários da Viação Cidade Sorriso e da Grande Bauru tentam encontrar empresas “parceiras” para figurarem na licitação somente para viabilizar a vitória das duas companhias. Em novembro de 2011, Cidade Sorriso e Grande Bauru são declaradas vencedoras do certame.

No caso de São José do Rio Preto, sócios da empresa Logitrans elaboraram o projeto básico de mobilidade urbana em 2010.

Embora não figurasse oficialmente como integrante dos quadros da Logitrans, Sacha Reck auxilia na confecção dos documentos e recebe, em 28 de dezembro de 2010, do presidente da comissão de licitação da prefeitura, Wanderley Souza, a minuta do edital de licitação de ônibus, antes de sua publicação.

Ao mesmo tempo em que tem acesso antecipado e participa da elaboração do edital, Sacha Reck atua como assessor jurídico de duas empresas de ônibus que entrariam na licitação, a Circular Santa Luzia e a Expresso Itamaraty.

A abertura dos envelopes acontece em 29 de abril de 2011, e as duas empresas representadas por Sacha Reck vencem a licitação.

Revisão de parecer

Na licitação para transporte coletivo em Porto Seguro (BA), realizada em agosto de 2011, e-mails (imagem acima) mostram que Sacha Reck e representantes da Viação Cidade Porto Seguro, da família Gulin, elaboraram o edital de licitação juntos.

Entre janeiro e março, Caico Gulin e Sacha Reck enviam um ao outro minutas do edital, com sugestões de alteração. A ingerência continua até na fase de habilitação das empresas, conforme indicam os documentos.

Contratado pela prefeitura, o engenheiro Fábio Miguel, da Turin Engenharia, envia a Sacha Reck, “para revisão”, os pareceres sobre habilitação ou não das empresas.

O edital foi publicado em 19 de abril de 2011 e a abertura dos envelopes ocorreu em 6 de junho, com vitória da Viação Cidade Porto Seguro.

Exclusão de vans

No processo de licitação de Guarapuava (PR), os e-mails apontam que Sacha Reck, que assessorou a empresa Pérola do Oeste no certame, fez modificações na minuta do edital para diminuir o acesso de empresas concorrentes.

Em e-mail a Júlio Xavier Vianna Jr., marido de uma das sócias das empresas do grupo Gulin, Sacha Reck recomenda, em 30 de março de 2009, a inclusão do termo “ônibus” em um dos trechos do edital, para evitar que concorram na licitação empresas de vans.

“Interessa incluir a expressão ‘POR ÔNIBUS’? Atualmente existe o transporte coletivo urbano com ‘VANS’ regularmente contratado em algumas cidades. Isto ajudaria a restringir o universo de concorrentes potenciais e o poder de fogo do inimigo virtual”, diz o advogado.

Em nome do secretário

Na licitação de ônibus do Distrito Federal, troca de e-mails (imagem acima) entre 2 e 3 de abril de 2012 revela que os sócios Sacha Reck e Danielle Cintra fizeram ofício em nome do governo do Distrito Federal convidando o próprio escritório de advocacia para prestar consultoria no processo de licitação da capital federal.

O documento, feito por Sacha Reck e Danielle Cintra, está em nome do então secretário de Transportes, José Walter Vazquez Filho, que ocupou o cargo na gestão do governador Agnelo Queiroz (PT). Conforme o contrato, o valor do serviço ficou em R$ 1,3 milhão.

A Logitrans também foi contratada para fazer o projeto de mobilidade urbana do Distrito Federal e, mais uma vez, os vencedores da licitação foram empresas das famílias Constatino e Gulin – Pioneira, Piracicabana e Viação Marechal.

No Distrito Federal, a CPI dos Transportes criada pela Câmara Legislativa em 2015 e encerrada em abril deste ano pediu o indiciamento de 17 pessoas por supostas irregularidades na licitação do transporte – entre elas o ex-secretário Vazquez e Sacha Reck.

A Justiça também determinou o cancelamento da licitação e a abertura de uma nova concorrência, mas o governo do Distrito Federal recorreu e ainda não há decisão sobre o caso.