Bela de longe a montanha, por que tão dura a escalada?

Por Ernerto Ferreira

"Kilima Muzuri Mali Karibu Kinamayuto"
 
Bela de longe a montanha, por que tão dura a escalada?

Provérbio Bantu, citado em 4 biografias, Paulo Leminski.

Ainda com Leminski no Leme da nau - "O setor de pessoal da estrada 
de ferro Central do Brasil vem, por meio desta, denunciar à Diretoria 
desta empresa, que foi encontrado em poder de João da Cruz e Sousa, 
negro, natural de Sta. Catarina, funcionário desta empresa, na função de
arquivista, um poema de sua lavra, com o seguinte teor:
 
Tu és o louco da imortal loucura.
O louco da loucura mais suprema,
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
 
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
É rebente em estrelas de ternura.
 
Tu és o poeta, o grande assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco.
 
Na natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
 
Pede-se providências."

Essa semana, recebi um presente extraordinário, um livro do 
Jornalista Audálio Dantas, que narra a vida e a morte de Vlado Herzog, 
desde a perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. 
Tive direito à simples dedicatória, contendo síntese doída dos fatos, 
"História de um tempo escuro", encerrada por saudações.

O fio oculto a unir o grande poeta negro, brasileiro na mais profunda acepção 
da palavra, ele mesmo um signo da terra, do povo e de suas lutas, com o 
estrangeiro branco, judeu tragicamente brasileiro, porque transformado 
em mártir de nossa gente recusada como povo é, para mim, esse silencioso
sacrifício ético, de conteúdo vazio, sem trocas, único capaz de 
realizar o ato civilizacional necessário à constituição de um povo e  de
uma nação, iluminada e colorida. Essa síntese aparentemente impossível,
entre dois mundos opostos, encontra nesses dois personagens, sua 
possibilidade transcendente, onde o horizonte não é apenas um pálido 
reflexo do narcisismo primitivo e ferido do colonizador.

Não vislumbro outra possibilidade para nós que pretendemos ser um povo, que 
não seja esse, guiado pelo longo e frágil fio estendido ao longo da 
história e, nesse sentido, peço providências aos meus leitores, para que
vistam todas as cores sobre seus corpos brasileiros, pois as almas do 
poeta negro e do judeu/brasileiro, pairam em nosso Céu.